Jamais fomos modernos

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Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemologia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação, contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que você esteja seguindo atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. Ofereça às disciplinas estabelecidas uma bela rede sociotécnica, algumas belas traduções, e as primeiras extrairão os conceitos, arrancando deles todas as raízes que poderiam ligá-los ao social ou a retórica; as segundas irão amputar a dimensão social e política, purificando-a de qualquer objeto; as terceiras, enfim, conservarão o discurso, mas irão purgá-lo de qualquer aderência indevida à realidade – horresco referens – e aos jogos de poder. O buraco de ozônio sobre nossas cabeças, a lei moral em nosso coração e o texto autônomo podem, em separado, interessar a nossos críticos. Mas se uma naveta fina houver interligado o céu, a indústria, os textos, as almas e a lei moral, isto permanecerá inaudito, indevido, inusitado.

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LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. p. 10.

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Bruno Latour nasceu em Beaune (França) em 22 de junho de 1947. É um pensador francês contemporâneo, um dos principais pensadores da Teoria ator-rede (TAR) e autor de vários livros cada vez mais conhecidos no mundo acadêmico. A obra “Jamais fomos modernos” é uma de suas principais contribuições, que ele apresenta com a seguinte proposição:

“A hipótese deste ensaio – trata-se de uma hipótese e também de um ensaio – é que a palavra “moderno” designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o trabalho da tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado. O primeiro conjunto corresponde àquilo que chamei de redes, o segundo ao que chamei de crítica.” (LATOUR, 1994, p. 16).