Celebração da fantasia

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Foi na entrada da aldeia de Ollantaytambo, perto de Cuzco. Eu tinha me soltado de um grupo de turistas e estava sozinho, olhando de longe as ruínas de pedra, quando um menino do lugar, esquelético, esfarrapado, chegou perto para me pedir que desse a ele de presente uma caneta. Eu não podia dar a caneta que tinha, porque estava usando-a para fazer sei lá que anotações, mas me ofereci para desenhar um porquinho em sua mão. Subitamente, correu a notícia. E de repente me vi cercado por um enxame de meninos que exigiam, aos berros, que eu desenhasse em suas mãozinhas rachadas de sujeira e frio, pele de couro queimado: havia os que queriam um condor e uma serpente, outros preferiam periquitos ou corujas, e não faltava quem pedisse um fantasma ou um dragão.

E então, no meio daquele alvoroço, um desamparadozinho que não chegava a mais de um metro do chão, mostrou-me um relógio desenhado com tinta negra em seu pulso:

Quem mandou o relógio foi um tio meu, que mora em Lima — disse.

E funciona direito? — perguntei.

Atrasa um pouco — reconheceu.

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GALEANO, Eduardo. Celebração da fantasia. In: ______. O livro dos abraços. São Paulo: L&PM, 2005. p. 23.

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Eduardo Galeano (1940-2015), uruguaio, foi jornalista e autor de mais de 40 livros que abordam história, jornalismo, ficção e política, principalmente de países latino-americanos. A crônica “Celebração da fantasia” faz parte de um livro que traz pequenas e belas histórias ouvidas e vividas em diferentes lugares, e que mostram o quanto a vida pode ser, ao mesmo tempo, grandiosa e singela.