Clarice Lispector - Come, meu filho

Come, meu filho

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Clarice Lispector (1920-1977), nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, foi escritora, tradutora e jornalista. Possui uma vasta e riquíssima obra composta de romances, contos, crônicas e ensaios, e é reconhecida como uma das escritoras mais importantes do século XX.

 

COME, MEU FILHO

 

O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.

– . . .

– Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?

– Chat… – raso, quer dizer.

– Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?

– Irreal.

– Por que você acha?

– Se diz assim. – Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?

– Parece.

– Onde foi inventado feijão com arroz?

– Aqui.

– Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?

– Aqui.

– Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?

– Às vezes.

– Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!

– Não.

– E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.

– Não fala tanto, come.

– Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?

– Adivinhou. Come, Paulinho.

– Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.

 

LISPECTOR, Clarice. Come, meu filho. In: ______. A imitação da rosa. Rio de Janeiro: Artenova, 1973. p. 58-59.